Há muito se fala sobre liberação sexual, feminismo e direitos das mulheres. Ao mesmo tempo, construindo-se em outra via, se fala também sobre o machismo e sobre as consequências de uma sociedade machista para seus membros. Mas o que seria a sexualidade da mulher? O que se chama de machismo? Por fim, qual seria a ligação entre as concepções machistas que permeiam até hoje em nossa sociedade e a vivência plena da sexualidade da mulher?
Desde os primórdios da psicanálise, Freud construiu uma noção de sexualidade que vai muito além do ato sexual. Quando se pensa na concepção de sexualidade na teoria psicanalítica, não se pode pensar apenas em relações sexuais e de que forma elas acontecem. Na verdade, segundo essa concepção, o sexual seria a base de todos os nossos investimentos afetivos, mesmo que muitas vezes apareça atuando de forma quase imperceptível. A sexualidade da mulher, por exemplo, abrange desde seu desenvolvimento – que é psicossexual – até as escolhas que fazemos na vida adulta. A sexualidade infantil, por exemplo, é um fato.
Já o machismo consagrou-se pela máxima de que homens, simplesmente por serem homens, tem certos privilégios que podem ser observados, principalmente, em suas participações na social. Por muito tempo, acreditou-se que o homem deveria ganhar mais do que a mulher, que ele teria direitos a mais por ser homem e que a submissão da mulher perante o homem era algo quase que “natural”. É como se “naturalmente” as mulheres devessem estar à disposição do homem, já que esse seria um dos papéis que fazem parte de sua essência.
Quando a gente lê esse tipo de coisa sobre o machismo, a gente tende a achar que isso é coisa do passado, que isso não existe mais. Hoje homem chora, ajuda na cozinha, ganha o mesmo ou até menos que muitas mulheres. Bom, isso é verdade, mas não é bem essa a questão. A questão é que a sexualidade da mulher ou a expressão dessa sexualidade faz com que possamos perceber o quanto ainda estamos presos à concepções machistas e pior: o quanto que ainda alimentamos o machismo em nosso cotidiano, em nossas relações. Talvez seja difícil de entendermos isso no primeiro momento, mas alguns exemplos de frases e de situações que são ditas e que ocorrem diariamente podem nos ajudar:
1 – “Homem solteiro pode ficar com quem e com quantas ele quiser. Já a mulher deve se preservar , pois se fizer o mesmo que o homem, ganhará fama” – eu desafio qualquer pessoa a me apresentar uma justificativa aceitável, que não seja o simples fato de uma pessoa ser homem e a outra ser mulher, para essa frase. Ahh, então eu estou dizendo aqui que as mulheres que ficam com outros caras depois do fim de um relacionamento não ganham fama, que isso é uma mentira? Pelo contrário, ganham fama sim. E por muitos motivos: porque somos hipócritas, porque aprendemos desde cedo que mulher pode fazer apenas tal coisas e homem outras coisas e por aí vai. Tá tudo errado. Mas nada justifica, de forma racional e clara, uma fama de garanhão para o homem nessa situação e outra fama de vagabunda para a mulher na MESMA situação. E outra: o que é mesmo uma VAGABUNDA? Por que elas fascinam tanto as fantasias das mulheres que as apontam?
2- “Mulheres não podem usar roupas muito curtas ou coladas, pois esse tipo de roupa provoca os homens” – Gente, tadinho dos homens! Sinto pena até! Não podem estar na presença de uma mulher de roupa curta porque já se sentem provocados por elas! Muitas vezes poderia passar pela cabeça deles que elas estão com essa roupa porque elas querem, porque se sentem bem com elas, porque até querem provocar alguém, mas não todo mundo, etc; E mais: a roupa curta de uma mulher não pode servir como justificativa para o ato de uma outra pessoa. Mas quem nunca escutou “ah, eu fiquei com ela mesmo, ela tava de roupa curta, me provocando, aí eu sou homem, né? Como é que eu ia deixar passar?” Sério, homem (das cavernas)? Então defina pra mim o que você entende por “provocação”.
3 – “Aquela fulana foi estuprada porque ela mesma provocou” – Ninguém é estuprado porque quer, se fosse por desejo de ambas as partes, já não se configuraria como estupro! E outra, mais uma vez: o que estamos chamando de “provocação”? Um vestido curto? Ok, então meu vestido curto é um convite para que você me estupre. Sério, essa é a lógica? Continuo sem entender.
4 – “Homem que cozinha e que cuida dos filhos com muito afeto é gay” – É gente? Gay? Ok, então vamos lá: um heterossexual é aquele que trabalha, ganha dinheiro, não é afetuoso, é sério, não ri muito e também não chora, pois não pode mostrar suas fraquezas. É isso? Olha, essa concepção é bem equivocada, mas diante de outras, é o mínimo que se pode esperar. Tem gente que acha que gay é aquele que “toma vinho sozinho” (?!). Então.
5 – “Mulheres que trabalham fora esqueceram de seus filhos e esses filhos não são bem criados” – Essa é uma concepção comum entre as próprias mulheres, diga-se de passagem. Muitas delas acreditam também que mãe mesmo é aquela que teve seu filho de parto normal, pois cesariana te priva da experiência da dor. Outra coisa comum é as mulheres acharem que, uma vez mães, não são mais mulheres, são mães. E pronto. Toda a sexualidade por água abaixo. Sobre ser “bem criado” ou não, essa é uma outra concepção a se pensar: o que significa ser “bem criado”? É estudar, trabalhar, não falar palavrão, não usar drogas, é isso? E se a mesma pessoa estudar muito, mas mentir pros pais e dizer que estava em um lugar x quando estava em um lugar y, ela é bem criada? Ou se estudar, ser gentil, mas um dia fugir da escola para beber e ir pra praia com os amigos, ela é o que? E se for do seu filho que falaram, ele é o que?
6 – “Mulheres devem aceitar que trair faz parte da natureza do homem” – Pois é, a NATUREZA…maldita hora que resolveram colocar a biologia dentro das concepções de gênero masculino e feminino. Desde que fizeram isso, ficou permitido se pensar em um homem que NATURALMENTE faz e pode fazer x coisas e em uma mulher que NATURALMENTE tem x e y características. A verdade é que quem nomeia o que seria natural de cada gênero é a própria sociedade, já dizia Judith Butler. Bem aí, já há uma contradição: uma noção construída pela sociedade, por nós, dentro de um certo contexto histórico, não pode ser, ao mesmo tempo, algo tão NATURAL assim. Se você quer acreditar que é da essência do homem trair, ok, isso é uma escolha sua. Mas não diga que isso é NATURAL, que é um direito dele, que Deus criou o homem assim, porque olha, não é bem isso aí não.
7 – “Trair não é da natureza da mulher” – Sério? Hahahahahahahah
8 – “Mulheres casadas PRECISAM engravidar para se sentirem completas” – O velho mito que ronda a maternidade. Ela seria algo tão maravilhoso que Freud escreveu que as mulheres só superam sua inveja de ter um pênis pelo desejo de terem um filho. Pode ser. Para algumas mulheres, sim. A dificuldade (das próprias mulheres, muitas vezes) é ACEITAR que existem no planeta Terra algumas outras mulheres que tem outras prioridades. Que são heterossexuais, que amam seus maridos, mas que não querem ter filhos, simplesmente porque, nelas, não há esse desejo. Pode ser que ele venha, pode ser que não. Mas isso só quem sabe é cada uma delas. Mas o que se vê é uma outra história: mulher tendo filho porque a sociedade está lhe cobrando, porque o marido ( e somente ele) quer, porque ela já é casada, então ela tem que ter um filho porque todo mundo tem que ter um filho, mulher abrindo mão de outros sonhos e de outros desejos seus, mais importantes naquele momento, para terem um filho, pois a família dela acha ter um filho mais importante do que os desejos dela mesma. E por aí vai. Ser mulher passa por inúmeras questões que não podem ser resumidas apenas na maternidade.
Todas essas premissas acima dizem respeito a uma diferença de gênero. Só isso. Uma pessoa pode ou não pode fazer alguma coisa simplesmente porque é do gênero X ou Y. Essas concepções fazem parte de nossa realidade atual. Acaba que, no fim das contas, de uma maneira ou de outra, somos julgados por termos um desses dois gêneros. Um alerta: a concepção dual de gênero vem caindo cada vez mais. Muitas das características que eram atribuídas somente para descrever uma mulher agora são de domínio do outro gênero. Explico: um homem heterossexual, que é casado com uma mulher, mas que gosta de vestir peças do vestuário feminino é de que gênero? Outra: um homem heterossexual, que é casado com uma mulher, mas que faz uma cirurgia para feminilizar seu corpo, pois assim se sente melhor, é de qual gênero?
Se colocarmos um pouco a cabeça pra funcionar, veremos que concepções baseadas apenas no argumento dualidade de gênero não podem mais se sustentar. Se você realmente acha que mulheres devem trabalhar menos que homens, que devem ser submissas a eles e que devem ter menos direitos que eles, assuma que isso faz parte do seu desejo, da sua fantasia, e viva isso! Mas não venha me dizer que isso é o “natural”, pois está na “essência” de cada gênero.
Por: Giovana Vieth
Fonte: http://www.blogsoestado.com/diva/2013/05/14/sobre-machismo-e-sexualidade-feminina/